Essa noite foi de tempestade. De insônia, minha desconhecida. Relâmpagos e trovões que gritam e escancaram. Eu vi. Escutei tudo. Fiquei acordada no conforto do meu abrigo imune às vicissitudes do alagamento. Sem medo da água e do vento em conluio, dançando pelos ares. Para observar os meus fantasmas. Para não fugir. E para não me entregar. Eu vi como os fantasmas ficam tranquilos, certos de sua impunidade. Acompanhei seus passos flutuantes sem pés. Sem origem, surgem do nada.
Fiquei quieta, olhando. Em sigilo. Espreitei, como voyeur, sem participar desse sádico prazer. Um vício viver com esses fantasmas. Almas penadas que se passam por almas gêmeas. A quimera secretamente esperada. E mesmo que não exista algo como uma alma, muito menos gêmea, são convincentes. Surgem de um costume tão antigo quanto o de desejar o prazer e evitar a dor. Procuro com atenção onde está sua substancialidade. Quero tê-la diante dos olhos e pegá-la com as mãos. Algo concreto e existente, que justifique tudo isso. Em vão. Não tem nada.
Como expectadora, acompanho o desassossego do meu corpo. O medo não sei bem do quê. A falta de algo inominável. A ladainha de velhas histórias que a mente insiste em repetir. Mantra às avessas, incessantemente renovado. Disco de vinil riscado com a agulha voltando sempre ao mesmo desgastado ponto. Olhos dilatados na escuridão. Um debater-se entre o sono e a vigília, sem pertencer a nenhum dos dois. Angústia. Cansaço. E ainda assim, uma tênue lucidez que não se abala com nada disso.
Acordo. O celular mostra 11h32. Quase hora do almoço. Sem saber que horas adormeci, ou se de fato dormi. Estou cansada. A cabeça dói. Preciso tomar água. Ébria de insônia. Ressaca sem álcool. Não quero dormir. Não quero acordar. Procuro aquele lugar onde tudo isso não passa de uma miragem. Mas estou aqui, onde a densidade dos fantasmas se transforma na matéria que chamamos de realidade.
Sem escapatória. Levanto da cama. Dentes escovados. Um copo de água. Dois copos de água. Não sei em que momento, em que gole aconteceu? Olho para o chão da sala e meu filho tem oito meses. Está de fralda brincando sobre o tapete. Minha filha caçula, aos dois anos, sapequinha, pula do sofá e faz um galo na testa. No sofá perto da varanda, amamento o menino, acariciando seus finos cabelos claros. Vejo a menina dormindo no carrinho de bebê. Olhos azuis como o céu de verão (ficaram verdes anos depois), estão cobertos pelas pálpebras. Tão pequenininha. A infância deles passa como um tornado saído do meu coração. Espiral do amor possível e imperfeito. Humano. Acolhimento do que foi e do que é. Aspiração de que se sintam acolhidos, aceitos e amados do jeito que são. E quando não forem, que eles mesmos se amem, se acolham e se aceitem. Redemoinho de coisas luminosas e fugidias. Espiral infinita do bem querer.
O sonho acordado prossegue. Ele sempre prossegue. Pego um ramo de folhas frescas de hortelã. Vão para um suco de abacaxi. A cada folha arrancada, o aroma se espalha e impregna meus dedos e narinas. É automático. Tenho 8 anos de idade. Dia ensolarado. Domingo à tarde, depois do almoço na casa do meu avô paterno. Minha avó postiça, Dona Júlia. Cabelos brancos. Olhos azuis, que continham alguma tristeza. Pele alva de polonesa contrastando com minha pele morena de índia. Com alegria e ternura, apesar da mencionada tristeza nos olhos, se abaixa e arranca um ramo de hortelã do seu jardim. Para fazer o chá que iria nos oferecer em seguida. Sinto o contentamento dela com isso. A riqueza imune a extratos bancários, investimentos e propriedades. A riqueza que me oferecia sem nenhum embaraço ou esforço. Os pequenos tesouros que eu encontrava em seu quarto de poucos pertences pessoais e que ela me deu assim que percebeu minha admiração por eles: um pote de talco com pompom amarelo, que eu achava lindo, sobre sua penteadeira. Uma pequena estátua, que para mim era do anjo da guarda, mas na verdade era do menino Jesus, na cabeceira da sua cama. Só anos mais tarde me dei conta que esse Anjo não tinha asas. Nenhum deles. Nem a avó, nem a estátua.
Está quase anoitecendo uma vez mais. Chuva fina agora. Previsão de mais chuva. Por vários dias. Ruas alagadas. Casas alagadas. Pessoas vivendo a densidade de outros sonhos, muito menos leves que os que sonhei acordada hoje. Que eles possam ter seus anjos sem asas. Que em meio à densidade das desigualdades, haja a matéria dos sonhos de um mundo melhor, mesmo que a chuva vá castigá-los ainda mais essa noite.
Autora: Kelly Pazello