Esses dias uma pessoa muito querida, sabendo que estou aposentada, me disse uma frase que tem sido recorrente na boca dos meus amigos e familiares: “Mas você é muito nova para não fazer nada”. Ouço isso com um leve sorriso no semblante. Não me irrito. Nem me sinto desconfortável. E não busco me justificar. Sinto um grande alívio em deixar ir as identidades que construí ao longo da vida.
Não me apresso em incorporar novos papéis a essa entidade difusa que chamo de eu. Digo com alegria: “Não sou nada”.Quando conheço alguém e a pessoa quer saber o que faço, simplesmente digo que não faço nada, que não sou nada nesse mundo que espera uma advogada, uma professora, uma terapeuta... Os diplomas estão guardados em algum armário, grudados a um antigo ego. Não vou transformá-los em carteira de identidade, nem num campo supostamente seguro que avalize quem sou. Ou que confirme inequivocamente o meu valor. Desisti de me apresentar e me definir por aquilo que um dia já fiz ou fui. Essas coisas são o cemitério. E estou, por ora, na vida. Cada vez mais no presente da vida, em ambos os sentidos.
Tampouco busco embarcar em viagem de construir nova identidade que faça sentido para o mundo da produtividade, da eficiência, da rentabilidade, da competência. Chega disso. A minha vida se transformou em ver o ordinário com olhos de poesia, como expliquei para essa pessoa querida. E a poesia não dá a mínima para o mercado, não está preocupada com o que os outros vão pensar. A poesia, associada à aposentadoria e uma simplificação cada vez maior da minha vida e necessidades, me coloca num lugar onde há liberdade. Não a liberdade de consumir. Mas a liberdade de pular para fora do tabuleiro, de não jogar esse jogo.
E sigo sendo, apenas. Sentindo o vento esvoaçar meus cabelos, os pés na areia da praia. Sigo tomando banho de mar, escrevendo parcas linhas. Vendo os dias ensolarados se sucederem aos dias chuvosos. As estações dançando em círculo. O tempo passando, o envelhecimento. Faço amizade com a solidão. As mágoas se dissolvendo. As alegrias vindo e se extinguindo. Ideias de livros que não dou conta de escrever. Uma pacificação interna. Aspiração de que todos os seres, sem exceção, sejam felizes. Tristezas itinerantes que me visitam sem eu fazer alarde. A constatação de que há muita vida na segunda metade da vida. E o entendimento de que num nível mais profundo, tudo está bem, sempre. Que a morte não é o fim, nem o nascimento o começo. Paro. Repouso a mente, essa fazedora compulsiva, contadora de histórias. Criadora de aparências luminosas que de fato não existem. Tranquilidade para o que é se manifestar sem esforço. Ócio criativo. Céu azul. Abertura.