15 May
15May

     Caminho pelo calçadão. Mar revolto. O céu cinza. A chuva fina. Outono se fazendo presente. Hoje o ritmo interno e o externo pedem uma caminhada. Lenta. Sem pretensões fitness. Galochas, sim, confesso, ando de galochas quando chove... assim os pés não ficam encharcados. Coloco o capuz do corta-vento. Nos ouvidos, a playlist Hirayama’s Cassete Collection - as músicas ouvidas pelo protagonista do belo filme de Wim Wenders, Perfect Days, que se você ainda não assistiu, recomendo.                 

     Resolvo ir até o espigão feito para a engorda da areia da praia. A caminhada lenta pede contemplação. Olhar para o horizonte nebuloso de hoje de manhã cedo. Os pingos da chuva vão formando pequenas gotas sobre o tecido impermeável do meu casaco. Chego na extremidade. Lembro que ontem tinha um passarinho de peito amarelo pousado sobre uma das enormes peças de concreto que colocaram ao redor. Hoje não tem passarinho. Mas olho para o lado e vejo. Uau!                 

     Sobre uma das peças de concreto, as horrendas que macularam a paisagem, uma orquídea azul. Flor provavelmente caída de algum vaso em alguma casa. Mas levada até ali, deliberadamente. Sob a flor, um papel impresso com a seguinte frase de Clarice Lispector:

                             "Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei."

     E amparando ambas, para que não voassem ao vento, uma pedra retirada do chão, trazendo a força da gravidade para essa sutileza não ser tão efêmera. Mergulhe. Mar. O desconhecido. Coragem.

     Nesse momento me senti como uma versão feminina e caiçara de Hirayama, a música de Lou Reed reverberando nos fones de ouvido: "Just a perfect day..." Espelhando o protagonista do filme, tirei uma foto desse momento precioso, tentando captar o que não se consegue captar, mas nem por isso, deixando de tentar. Assim como essas linhas são a mesma tentativa vã.                 

     Mergulhada no brilho desse momento, me passou pela cabeça a ideia de levar outra flor e outro excerto literário e deixar no mesmo lugar, sob a mesma pedra. Quem sabe...Tal qual Hirayama marcava numa folha de papel a sua jogada num jogo da velha iniciada por um desconhecido e escondida numa fresta de um banheiro público de Tóquio, eu poderia interagir com um desconhecido, ou desconhecida, sem precisar saber quem é, sem querer saber necessariamente. Mas apreciando essa interação.                 

     As sincronicidades da vida estão acontecendo a todos os momentos, mas estamos sempre com pressa, querendo chegar a algum lugar que não é onde nós estamos agora. Nossos olhos estão alheios ao que está ao redor, desejando alcançar algo no futuro. Ou desejando reaver algo do passado. Sem perceber que este é um dia perfeito. Mesmo que haja caos, que as coisas não sejam de acordo com o que se deseja. 

     Sinto o chão amparando meus pés. O espaço infinito acima da cabeça e ao meu redor. O sopro da Vida passando por mim a cada respiração. Ah! Que dia perfeito. Nada mais é necessário.


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