Nove e meia da noite. Lua mingua. Alívio de congestionamento emocional. Mente de samsara. O interfone toca três vezes. Portaria remota informando que a pizza chegou. Mascarada, aperto o “T” no painel do elevador. Vejo um corpo-sujeito de mulher não-objeto refletido no espelho. Sem ilusões, vitórias ou juventude. Aceitação.
O motoboy abre a portinha para passar a entrega. “Cartão de aproximação. Crédito. Obrigada. Boa noite”. Ele vai, anônimo, por uma taxa, para ganhar a vida. Eu subo, não completamente anônima dessa multidão que insiste parecer ser eu. Enfastiada do discursivo e do conceitual, aspiro ser anterior a qualquer palavra.
Abro a caixa. Pizza de pepperoni. Tem um ser morto em cima. Mas não sinto compaixão genuína. Ainda assim, agradeço e dedico os méritos para esse ser que está servindo de alimento. Coloco dois pedaços na tampa. Sem prato para lavar. Lembro de umas palavras que me disseram há muitos anos, no contexto de um relacionamento desamoroso: “Assim você vai acabar sozinha”. Essa era a ameaça do que supostamente poderia me acontecer de pior se eu não agisse de acordo com a linha de manipulação subjacente. Sento-me no sofá. Sozinha. O cachorro dorme. Será que sonha?
Quando dou a primeira mordida, sei que não tenho apenas seis anos de idade. Mas alguma parte obscura (ou luminosa?) ainda insiste nisso. Naquele tempo, depois da missa de sábado à noite, o padre “era nosso”. O convidado de honra lá em casa. Pedíamos pizza. A mesa era uma alegre comunhão. Meu pai e o clérigo tomavam vinho. Inebriavam-se com o dionisíaco sangue de Cristo, sem parcimônia. Depois da celebração desse herético sacramento, ele pegava o acordeão. E saíamos para a frente da casa, ruidosos, cantando “Santa Lucia” em italiano. A vida era magia e beleza, ainda que vizinhos sonolentos discordassem, do jazigo de suas camas.
Levo a pizza à boca. Profana hóstia consagrada. Sou enfeitiçada pelo inefável poder do símbolo, que transcende dogmas e as amarras do espaço-tempo. Estou sozinha. Em comunhão.
Amem (isso mesmo, sem acento).