24 May
24May

     Aspiro existir da forma mais sincera que me seja possível. Não da mais comedida e  coerente. Nem da mais aceita e aplaudida. Demorei algumas décadas para me permitir correr esse risco. Estar no mundo sem ser de todo uma farsante. Aquela que age de acordo com o que esperam dela, tecendo uma trama que sufoca e é difícil de desmanchar. Teia construída com dedicação e disciplina. Para agradar, ser aceita, amada, para pertencer. Fui como a aranha tecelã. Produzindo e trançando finos fios, porém muito resistentes. Terminada a obra, orgulhosa do meu trabalho, só então compreendi que era a presa do meu próprio labor. Sou a minha perdição. Minha própria torturadora. Uma predadora interna, sem a necessidade de um algoz manifesto. E ao mesmo tempo, uma vítima, perturbada com a armadilha que eu mesma forjei.

     Na ocupação de me desenredar disso, fui aprendendo a estimar a vulnerabilidade. A não vê-la como sinal de fraqueza, mas de coragem. De me mostrar, me expor, não mais me dispondo a jogos desgastados que envolvem manipulação e dominação, mensuração entre ganhos e perdas. Arrojo de sentir o que de fato estou sentindo. Sem contabilizar os afetos num balancete sob a lógica do que é quantificável. Sem vilipendiar o corpo cheio de emoções que suplicam para serem vistas e sentidas. Coragem de mostrar o que sinto,  apesar de não encontrar reciprocidade inúmeras vezes. Perigo de não ser compreendida. Possibilidade de que essas fragilidades sejam usadas contra mim. Todos esses são riscos menores, perdas ínfimas. Já compreendi. O maior desvio seria não transbordar o que é. 

     Não vejo outra forma de andar pela vida, viva. Como viver sem se deixar atravessar por Eros e todas as dores e maravilhas que dançam diante dos olhos e do coração?  Como acreditar que posso controlar a situação? Que posso prever tudo que pode dar errado e me prevenir contra o indesejado? Como saber se o que tento evitar não é na verdade o que eu mais preciso no momento? Disparate confiar na minha limitação como fonte de orientação. Sim, porque tudo que tenho como certo se mostra parcial, limitado, insuficiente, não adequado para todas as situações. E elas mudam sem cessar. E o meu juízo das coisas quase sempre se engana diante delas, fugidias que são. 

     Escrevo e vivo como quem não tem compromisso de coerência absoluta. Como quem pode mudar de ideia, de percepção, a qualquer momento. Como a lua, que hoje está plena, mas em breve se esconderá. Como as marés, como a brisa que se transforma em ventania e furacão. E essa é a única forma de escrever e de viver que me interessa. A mais primal, desinteressada de aprovação externa, seja qual for. Não quero a coerência hermética de categorias pré-estabelecidas e valorizadas pelo status quo, mesmo as científicas ou acadêmicas. Minha direção ou falta dela, é ingovernável por tabelas de excel, estatísticas e tratados. Sigo o viés pelo qual a alma clama naquele instante, ouço os sussurros do inconsciente, navego pelo caráter onírico da realidade. Mergulho num quase delírio. Deixo o sensato e o razoável de folga. 

     Esperneio à exaustão, como uma criança pequena, com a força violenta do querer. Energia necessária para desmanchar a teia arquitetada.  Força visceral, antes de ser aniquilada em nome da padronização e da conformidade. Dou voz à criança birrenta, mal julgada, incompreendida e sufocada. Choro aos soluços, lágrimas libertas, quando a tristeza vem, a saudade, a falta, o desespero. Tudo isso vem, sem convite, mesmo que encontre barricadas à porta.

     Escrevo com a mão pequena infantil, que desenha as letras, de forma inocente num bilhetinho para a mamãe. E quando sinto que é o momento, inscrevo o traço com as mãos encarquilhadas de uma anciã, que sabe o peso de cada palavra. Mãos cuidadosas de mãe acalentam a palavra quando ela chora. Mãos insinuantes de Afrodite enfeitiçam o verbo com paixão, e dele extraem o ouro alquímico. Mãos que às vezes são garras, caçam com a unha o sentido da Língua. Mãos que mais parecem patas, sem habilidade de manejar o vernáculo, ainda assim, tateiam os vocábulos na escuridão. Essas mãos querem dizer o indecifrável, conduzindo os fonemas à folha. 

     Um dia estarão pousadas sobre o peito, impávido defunto. Sem teias, sem artifícios. Silêncio. E nada mais.

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